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Transporte de Energia por Convecção

Precisamos agora derivar uma relação entre o gradiente de temperatura e o fluxo total de energia no estado de equilíbrio convectivo. Para isto, precisamos considerar em detalhe o transporte de energia dos elementos em movimento, dentro da teoria do comprimento de mistura (mixing length theory), desenvolvida pelos alemães Ludwig Franz Benedikt Biermann (1907-1986) em 1948 (Konvektion in rotierenden Sternen, Zeitschrift für Astrophysik, 25, 135), Erika Vitense (1953, Die Wasserstoffkonvektionszone der Sonne, Zeitschrift für Astrophysik, 32, 135), e Erika Böhm-Vitense (1958, Über die Wasserstoffkonvektionszone in Sternen verschiedener Effektivtemperaturen und Leuchtkräfte, Zeitschrift für Astrophysik, 46,108), baseados no trabalho do alemão Ludwig Prandtl (1875-1953) de 1925, considerado um dos pais da mecânica de fluidos (Zeitschrift für Angewandte Mathematik und Mechanik, 5, 136).

O excesso de temperatura de um elemento ascendente sobre o meio circundante é dado pela diferença entre a mudança de temperatura adiabática, dentro do elemento, e a mudança de temperatura real no meio, desde o ponto de início do movimento até seu ponto final. Se o elemento se deslocou uma distância $ dr$, seu excesso de temperatura será:

$ dT = (1 - \frac{1}{\gamma})\frac{T}{P}\frac{dP}{dr}\times dr
-\frac{dT}{dr} \times dr \equiv \Delta\nabla T \times dr$

onde o símbolo:

$\Delta\nabla T \equiv (1 - \frac{1}{\gamma})\frac{T}{P}\frac{dP}{dr} -\frac{dT}{dr}$ (1.55)

representa o excesso do gradiente de temperatura real - em valor absoluto - sobre o gradiente de temperatura adiabático. Se multiplicarmos este excesso de temperatura por $c_p \rho$, obtemos o excesso de energia térmica por unidade de volume. Se ainda multiplicarmos pela velocidade do elemento $v$, obtemos o fluxo de energia por unidade de área, por unidade de tempo:

$ H = \Delta\nabla T\, dr\, c_p \rho\, v.$ (1.56)

Exatamente a mesma equação vale para o elemento descendente, já que uma mudança de sinal em $dr$ compensa uma mudança em sinal em $v$. De fato, a equação (1.56) representa o fluxo médio produzido por movimentos convectivos se $ dr$ é tomado como o deslocamento médio (isto é, a distância vertical a partir da camada em que o elemento tinha a mesma temperatura interna do meio), e $ v$ é tomada como a velocidade média do deslocamento vertical de todos os elementos de uma camada.

A equação (1.56) já representa a relação necessária entre o transporte de energia convectivo e o gradiente de temperatura. Não está, ainda, em uma forma conveniente, já que a velocidade $v$ precisa ser determinada primeiro pela seguintes considerações dinâmicas. A deficiência de densidade do elemento ascendente sobre o meio circundante pode ser calculada, similarmente ao excesso de temperatura, pela seguinte fórmula, usando-se a desigualdade (1.52):

d\rho =-\frac{1}{\gamma}\frac{\rho}{P}\frac{dP}{dr} \times dr + \frac{d\rho}{dr} \times dr = \frac{\rho}{T}\Delta\nabla T \times dr.$

Se a deficiência de densidade é multiplicada pela aceleração gravitacional, obtemos a deficiência em força gravitacional, ou excesso de força para cima. Como esta força atua somente ao final do deslocamento, a força média é obtida multiplicando-se por 1/2. Multiplicando-se este excesso de força médio pela distância $ dr$, obtemos o trabalho realizado pelo excesso de força sobre o elemento. É este trabalho que produz a energia cinética do elemento. Portanto:
$\frac{1}{2}\rho v^2 = \frac{\rho}{T}\Delta\nabla T \times dr \frac{GM_r}{r^2}\frac{1}{2}dr$ (1.57)

Como os dois lados da equação (1.57) são quadráticos em $v$ e $r$, ela vale para elementos ascendentes e descendentes. Portanto, podemos tomar a equação (1.57) como representativa de todos os elementos de uma camada, se novamente tomarmos $v$ e $dr$ como representando médias apropriadas. A equação (1.57) nos dá a velocidade de convecção em termos do gradiente de temperatura. Ela pode ser utilizada para eliminar a velocidade de convecção da equação (1.56) do fluxo. Introduzimos aqui um comprimento de mistura ( mixing length) $\ell$ para representar a distância vertical média, ou livre caminho médio, que o elemento se move antes de se dissolver no meio circundante. Ao mesmo tempo, elementos (bolhas) frias da camada superior afundam uma distância $ \ell$ e se dissolvem. Este mesmo efeito ocorre quando fervemos água em uma panela; próximo à fervura, inicia-se um fluxo de matéria quente do fundo para a superfície, e vice-versa. Em termos do comprimento de mistura, podemos representar a distância média que um elemento se move em um momento arbitrário como:
$ \overline{dr}=\frac{1}{2}\ell$

Desta forma obtemos das equações (1.56) e (1.57):

${H = c_p \rho (\frac{GM_r}{Tr^2})^\frac{1}{2} (\Delta\nabla T)^\frac{3}{2} \frac{\ell^2}{4}}$ (1.58)

A equação (1.58) representa nossa relação final entre o fluxo de energia convectivo e o gradiente de temperatura. Ela envolve uma grande incerteza, o valor do comprimento de mistura. Deve ficar claro que a teoria do comprimento de mistura representa uma extrema simplificação ao processo físico real de convecção, pois é uma aproximação local, isto é, assume que o fluxo é dado pelo valor local do gradiente de temperatura e parâmetros termodinâmicos locais. Experimentos em laboratório indicam que o comprimento de mistura é geralmente comparável ao tamanho linear do volume em que observamos convecção. Correspondentemente, poderíamos igualar o comprimento de mistura à profundidade da camada instável. Entretanto isto seria uma grande super-estimativa do comprimento de mistura, para as camadas instáveis em que a densidade decresce de um grande fator, da base até a camada superior, como no caso em que a região convectiva ocorre perto da superfície. Um valor mais próximo da realidade é assumir que o comprimento de mistura $ \ell$ seja uma ou duas vezes a escala de variação de pressão, isto é, a distância em que a pressão varia por um fator $e$, $ \lambda_p$, definida como:

$\lambda_p \equiv -(\frac{d\ln P}{dr})^{-1} = \frac{P}{g\rho}$

usando-se a equação do equilíbrio hidrostático (1.24), e definindo $ g$ como a aceleração gravitacional. Definimos $\ell=\alpha \lambda_p$, onde $ \alpha$ é chamado do parâmetro do comprimento da mistura. Para $\alpha=1$, denominamos a teoria de ML1. Uma variação é usar esta relação somente se $\alpha\lambda_p$ for menor ou igual à distância da posição em questão até o limite superior da zona de convecção. Se maior, usamos esta última distância; esta aproximação chama-se ML2. As observações recentes indicam também que o comprimento de mistura não é o mesmo para tipos de estrelas diferentes, e nem mesmo para profundidades diferentes da mesma estrela, isto é, próximo ao núcleo ou próximo à superfície. Para as estimativas seguintes, usaremos
$\ell \approx \frac{1}{10}R$
Veremos que a incerteza neste valor é de pouca consequência para zonas de convecção no núcleo de uma estrela. A incerteza em $ \ell$ introduz, entretanto, incertezas significativas nos modelos, quando a instabilidade convectiva ocorre logo abaixo da fotosfera de uma estrela - como muitas vezes é o caso - e portanto introduz incertezas significativas na estrutura e extensão das camadas externas de um modelo estelar. De fato, a falta de uma boa teoria hidrodinâmica de convecção é um dos mais sérios problemas na compreensão de modelos de interiores estelares. Isto se dá porque as equações hidrodinâmicas, incluindo turbulência, são altamente não locais e não lineares, causando movimentos inomogêneos. Já existem algumas aproximações calculadas, por exemplo, os modelos numéricos hidrodinâmicos bi e tri-dimensionais, dependentes do tempo, de convecção compressível, de Bernd Freytag, (4.4 MB mpeg de Betelgeuse) e as mostradas abaixo.

Para que a idade, tamanho e luminosidade do Sol calculados pelos modelos sejam iguais às observadas, α=1. Entretanto, Klaus Fuhrmann, M. Axer & Thomas Gehren (1993, Astronomy & Astrophysics, 271, 451) demonstraram empiricamente que as linhas de Balmer do espectro solar precisam ser calculadas usando α=0,5. Joachim Theurer, Peter Ulmschneider (1938-) & Wolfgang Kalkofen, (1997, Astronomy & Astrophysics, 324, 717) determinaram α=2,0 para explicar as oscilações na atmosfera do Sol. Francesco R. Ferraro, Elena Valenti, Oscar Straniero, & Livia Origlia, em 2006 no Astrophysical Journal, 642, 225 determinaram α=2,17 para fitar 28 cúmulos globulares. Hans-Günther Ludwig, Stefan Jordan & Matthias Steffen (1994, Astronomy & Astrophysics, 284, 105) mostraram que pode-se construir modelos uni-dimensionais com a teoria de comprimento de mistura para anãs brancas com ML1/$\alpha$=1,5 equivalentes aos modelos hidrodinâmicos. Entretanto um parâmetro maior é necessário para representar a estratificação de temperatura nas camadas na base da zona de convecção.

BergeronPierre Bergeron
Para que os espectros das anãs brancas com atmosfera de hidrogênio tanto no ótico quanto no ultravioleta sejam representados pela mesma temperatura efetiva, Pierre Bergeron, François Wesemael, Gilles Fontaine, Rex A. Saffer & Nicole F. Allard (1995, Astrophysical Journal, 449, 258) demonstraram que é necessário utilizar-se ML2/alpha=0,6. Para as anãs brancas com atmosfera de hélio, o melhor valor é ML2/α=1.25, de acordo com Alain Beauchamp, François Wesemael, Pierre Bergeron, Gilles Fontaine, Rex A. Saffer, James Liebert & Pierre Brassard, 1999, Astrophysical Journal, 516, 887. Matthias Steffen, Hans Günther-Ludwig & Bernd Freytag (1995, A&A, 300, 473) demonstraram que os modelos unidimensionais para as anãs brancas não conseguem fitar bem o espectro previsto pelos modelos hidrodinâmicos para $ \lambda$<1400Å.
Gautschy
Comparação de modelos bi-dimensionais para a zona de convecção superficial de uma anã branca DA, publicado por Alfred Gautschy, Hans Günther-Ludwig & Bernd Freytag (1996, Astronomy & Astrophysics, 311, 493), com um modelo ML3=ML2/$\alpha$=2 (linha pontilhada). As zonas de convecção dos modelos bidimensionais se extendem até 10-15M* (para Tef=12600K) e 10-14M* (para Tef=11 400K) são sempre menores do que o ML3, que se extende até 8×10-15M*. Note que o comprimento de mistura é um parâmetro livre. Nos modelos de pulsação de anãs brancas, ele foi escolhido como ML3 para fitar a temperatura da borda azul da faixa de instabilidade das DAVs, mas este mesmo valor não fita os espectros observados. Os fluxos acima de 1 indicam sobreimpulso (overshooting).
Pier-Emmanuel Tremblay, em sua tese de doutorado de 2011 propõe α=0,8 para as anãs brancas DAs, mas em seu artigo de 2013, no Astronomy & Astrophysics, 552, 13, com Hans-Günter Ludwig, Matthias Steffen & Bernd Freytag, demonstra que os cálculos tri-dimensionais (150×150×150 pontos) com o código CO5BOLD são necessários para corrigir os valores tanto de α=0,6 quanto de α=0,8. O mesmo código também foi usado por Elisabetta Caffau, Hans-Günter Ludwig, Matthias Steffen para estudar o Sol e o efeito da granulação na determinação das abundâncias solares, estudando 1,2 h de tempo solar, em uma caixa de 140×140×150, representando 5,6×5,6×2,3 Mm3. Ana Bonaca e colaboradores, em seu artigo de 2012 estudaram as pulsações das estrelas observadas com o satélite Kepler e, como o raio do modelo é correlacionado ao valor de α, concluíram que o valor solar de α=2,12 não é adequado para todas as estrelas, aumentando com a metalicidade da estrela, propondo
α=a + b log g+ c log Tef + d [Fe/H]
onde [Fe/H] é a metalicidade em relação ao Sol,
$[{Fe/H}] = \log (\frac{N_{Fe}}{N_{H}})_{estrela}-\log (\frac{N_{Fe}}{N_{H}})_\odot$
com a=7,97±0.27, b=-0,31±0,09, c=-1,33±0,80 e d=0,48±0,12.

Sol
Simulação bi-dimensional da convecção solar, mostrando as inomogeneidades
convection
Simulação tri-dimensional da convecção no núcleo de uma estrela massiva.

bolhas Vittorio M. Canuto & Italo Mazzitelli, em 1991, (Stellar turbulent convection - A new model and applications, Astrophysical Journal, 370, 295) introduziram uma teoria de convecção sem parâmetros livres, que leva em conta as cerca de 109 escalas de mistura presentes na convecção. Neste artigo eles propõem que o uso de MLT com o comprimento de mistura igual à distância do ponto ao topo da camada de convecção, isto é, sem o parâmetro livre α em $ \ell = \alpha \lambda_p \equiv \alpha H_P$, é adequado, mas a expressão do fluxo convectivo precisa ser modificada para incluir os diversos tamanhos de bolha, aumentando o fluxo convectivo.

A teoria que leva em conta todo o espectro de tamanhos das bolhas foi ampliada por Vittorio M. Canuto, Itzhak Goldman & Italo Mazzitelli, em 1996, Turbulent Convection: Old and New Models, (Astrophysical Journal, 467, 385). No artigo Selfconsistent model for turbulent convection: helioseismology, ages of globular clusters, and white dwarfs blue edge, [Pacific Rim Conference on Stellar Astrophysics, ASP Conference Series; Vol. 138; ed. Kwing Lam Chan; K. S. Cheng; and H. P. Singh (1998), p.123], eles demonstram que o efeito do uso desta teoria reduz a idade dos cúmulos globulares entre 1 a 2 Ganos, e reproduz melhor a temperatura observada das borda azul da faixa de instabilidade das anãs brancas. Richard B. Stothers & Chao-wen Chin, no artigo Tests of two convection theories for red giant and red supergiant envelopes (1995, Astrophysical Journal, 440, 297), calculam modelos de 3 a 10 MSol com a teoria de Canuto, Goldman & Mazzitelli e comparam a MLT. Os resultados são similares, mas a MLT tem um parâmetro livre, o comprimento de mistura.

Seguindo o desenvolvimento de François Roddier, no Progress in Optics XIX (1981, ed. E. Wolf, North-Holland, p. 281), o movimento de um fluido passa de laminar para turbulento quando seu número de Reynolds, Re$ =v\ell/\nu$, excede um valor crítico que depende da geometria do fluxo. Na definição do número de Reynolds, $ v$ é a velocidade, $ \ell$ é o comprimento característico do fluxo e $ \nu$ é a viscosidade cinemática. No interior estelar, assim como na atmosfera da Terra, os movimentos excedem este valor crítico amplamente, de modo que o movimento convectivo é extremamente turbulento. No ar, a viscosidade cinemática é da ordem de $ v\simeq 15\times 10^{-6}{m^2/s}$, $ L_0\simeq 15$ cm e $ v\simeq 1$ m/s, resultando um número de Reynolds crítico da ordem de Recrit$ \simeq 10^4$ e qualquer escala maior terá movimento turbulento.

Em 1941, Andrei Nikolaevich Kolmogorov (1903-1987) (Doklady Akademii Nauk S.S.S.R, 30, 229) propôs que em um meio turbulento, a energia cinética dos movimentos de larga escala é transferida para movimentos com escalas cada vez menores, até que este processo pare quando a energia cinética for dissipada por fricção viscosa. Num estado estacionário, a dissipação de energia $ \varepsilon_0$ deve ser igual à taxa de produção de energia turbulenta. Seguindo este raciocínio, Kolmogorov assumiu que a velocidade $ v$ do movimento é proporcional à escala $ \ell$ e à taxa de produção e dissipação de energia $ \varepsilon_0$. Como nas escalas maiores $ \varepsilon_0 \propto v^2/\tau$, onde $ \tau$ é o tempo característico $ \tau \equiv v/\ell$,

$v \propto \varepsilon_0^{\frac{1}{3}}\ell^{\frac{1}{3}}$

Em uma análise espectral (de Fourier) da energia cinética em função de um número de onda $k=\pi/\ell$, a energia $ E(k)dk$ entre $ k$ e $ k+dk$ é proporcional a $ v^2(k)$, logo

$\displaystyle E(k)dk \propto k^{-\frac{2}{3}} \longrightarrow
E(k) \propto k^{-\frac{5}{3}}$

conhecida como a lei de Kolmogorov, que só é valida longe das bordas $ L_0^{-1} \gg k \gg \ell_0^{-1}$, onde $ L_0$ é a escala externa, geralmente a escala da região que dá origem à turbulência, e $ \ell_0$ a escala na qual a dissipação por viscosidade ocorre. A distribuição espectral de energia $E(k)$ é definida de modo que a energia cinética de turbulência por unidade de massa seja:
$\frac{1}{2}v^2 = \int_0^\infty E(k)dk$
O importante desta discussão é que a teoria de convecção altera a estrutura dos modelos e sua composição química, modificando o espectro observável por causa das dragagens que ocorrem nos ramos gigantes e super-gigantes, trazendo material processado para a atmosfera da estrela. Até mesmo a idade das estrelas dos cúmulos são alteradas por modificações na forma de cálculo da convecção.
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Modificada em 1 abril 2015